Meu mundo é todo meu

Perguntaram em que mundo eu vivo. Assim, direto, com ar de crítica: "vem cá, em que mundo você vive?"...Não soube responder. E porque essa pergunta, "em que mundo você vive", me é tão freqüentemente refeita?

Pensando bem, meu mundo é o mesmo mundo de todo mundo que me pergunta. Só que é meu, e faço desse meu mundo o que eu quiser. Meu mundo me faz ficar distraído, às vezes, e por isso não reconhecer quem fala sorridentemente comigo com a intimidade de quem já dividiu sorrisos anteriores. Tem gente que não entende.
Eu me distraio. E esqueço. Assim como esqueço o caminho de casa e entro nas ruas erradas, e gasto mais combustível que os outros que não são do meu mundo. Meu mundo é mais largo e mais longo, talvez, porque tenha caminhos que não são os mesmos de todo mundo.
Meu mundo é só meu, e nele posso estar plena e completamente sozinho enquanto milhares de pessoas pulam e dançam e gritam e mexem pra lá e pra cá suas cabeleiras espichadas nos salões com cheiro de shampoo, e bebem e comem e mostram uma incontida e irritante e improvável alegria ao som da música da moda.
Meu mundo me faz sorrir sem riso, e tem gente que não entende que é possível rir sem sorriso, chorar sem lágrima, sofrer em paz e se desesperar em silêncio. Tem gente que não entende que eu danço com os olhos, canto com o coração e vôo sem sair do lugar. Que me embriago bebendo água, e que rodopio pela pista sem sair da cadeira.
Esse mundo, que é meu, é igual ao de todo mundo. Só que quase ninguém vê. Quase ninguém tem a chave da porta da frente.
Quase ninguém pode respirar o ar que nele existe. No meu mundo as pessoas não nascem, crescem, casam, têm filhos, morrem. No meu mundo tudo pode acontecer em um dia só, ou até mesmo não acontecer em dia nenhum. No meu mundo chove. No meu mundo faz sol. No meu mundo faz frio, calor, venta e o mar bate nas pedras. Igualzinho ao mundo que não é meu. A diferença é que, no meu mundo, tudo isso pode acontecer ao simples roçar das costas de quem eu amo no meu peito em noite de chuva.
A diferença é que no meu mundo tudo pode acontecer ao primeiro acorde da sinfonia do silêncio que toma conta de tudo quando escuto o suspiro perseguido sofregamente tarde afora. A diferença é que no meu mundo tem lugar para tudo, para todos, para quem eu quiser, e eu sempre quero gente, muita gente por perto inflando meu ego e soprando minhas velinhas e bebendo meu sangue e abraçando meus sonhos e por isso às vezes a superlotação causa alguns transtornos e as saídas de emergência são liberadas com frequência e, frequentemente, em horas descabidas.
E, quase sempre, toda essa gente está resumida em uma gente só, em um planetinha preso à minha órbita particular, em um solzinho que brilha só para mim e me aquece o olhar. No meu mundo pequenas epifanias são históricos acontecimentos, e grandes momentos são coloridas bolhas de sabão. No meu mundo não há lugar para vetustos e o poder, aquele, que embriaga, é feito de açúcar e derrete ao primeiro sorriso.

E a você, que me pergunta em que mundo eu penso que vivo, digo que vivo no meu mundo e passeio mundo afora. Porque meu mundo é grande, tão grande, que não cabe em lugar nenhum que não seja dentro de mim.

--O texto é de André Gonçalves--



--O mundo é o meu--